Há quem diga que o amor nada mais é do que um encontro de sintomas. E acho que no geral, isso é muito sábio. Atendo vítimas de violência doméstica todos os dias, só hoje pela manhã foram mais de cinco casos. E, não por coincidência, as histórias eram muito parecidas.
Um casamento ou união estável que durou quase uma década, estão separados a pouco tempo, alguns meses, e então um deles começa a viver sua própria vida e outro surta. Começam a se pertubar, perseguir, ameaçar e as vezes até agredir.
Aí, diante dessas histórias, depois de longo diálogo com cada uma das mulheres que se apresentam como vítimas, eu fico pensando o que se passava no dia a dia dessas relações. E em como o sentimento de posse estava no alicerce do relacionamento. É óbvio que qualquer análise relacional que se faça sobre o tema, não diminui a gravidade dos crimes em questão. Mulheres são vítimas de violência doméstica a partir de uma construção histórico-social que as coloca na posição de vítima.
No entanto, isso não exclui o fato de que em ambos os pólos dessas relações, existe legitimação da opressão. O fato é que o homem leva vantagem, pelo empoderamento social que tem e pela força física e por outras coisas também. Mas isso não encerra a questão relacional. Pois, o sentimento de posse que está como pano de fundo das relações é reciprocamente construído.
Tanto isso é verdade, que mesmo após a denuncia, a liberação da medida protetiva, o inquérito policial, a maioria das mulheres (maioria esmagadora, mais de 80 % delas) volta para o companheiro que denunciou. E muitas são mulheres bem esclarecidas, tem apoio de suas famílias e mesmo assim retomam relacionamentos nos quais foram agredidas.
Então reflito... não acredito que isso seja apenas devido a opressão histórico-social, que elas voltem. Muitas relatam inclusive, depois de desistirem do procedimento, que agrediram seus companheiros também, os ameaçaram e xingaram. É delicado atender crimes que ao detalhar os fatos, as motivações são subjetivas e não ficam claras, mas a posse que ambos os lados sentem um pelo outro, sempre aparece de alguma maneira nas declarações para a polícia.
O ciúme é o principal motivo da maior parte das agressões. Mas o interessante disso, é que o ciúme é tratado socialmente como uma coisa boa, uma prova de amor. Já vi casais brigarem porque um diz que o outro não sente ciúmes e por isso não o ama. Novelas retratam o ciúme de forma natural. Cria-se então uma imensa contradição. A sociedade pinta o ciúme de cores belas... e é o ciúme o principal elemento motivador da violência doméstica...
Ai retomo a citação inicial, se crescemos e aprendemos que sentimento de posse e amor são a mesma coisa, é óbvio que amar alguém se torna algo nada mais do que um encontro de sintomas de gente doente que aprendeu que se relacionar é controlar, é segurança para si mesmo. E por isso me pergunto como, se quase todo mundo, mesmo quem tem maiores capacidades de abstração, tem sua percepção relacional pautada nessa cultura de posse, diferenciar amor dessas contaminações mesquinhas?
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