sexta-feira, 31 de março de 2017

Sobre não fazer nada a respeito...


Sou muito apegada a reflexões sobre a vida, de todo tipo. Reflexões de cunho religioso, cristianismo, judaísmo, budismo. Elaborações sobre as questões do corpo, medicina alternativa, terapias orientais, dicas de alimentação e exercícios físicos. 

Gosto também de psicologia, psicanálise, interpretações jungianas de sonhos. Tenho amigos capazes de passar muitas horas comigo tomando café e conversando sobre essas coisas e muitas outras. Gosto de gente, de elaborar a vida através da palavra e da companhia. E claro, como boa libriana que sou, não resisto a uma análise sobre minhas relações, não como DR, mas como observação, numa perspectiva a la Machado de Assis, de metalinguagem... gosto de ir vivendo as relações e reparando nelas.

Mas apesar desse apego por reflexões, diálogos, leituras e escritas, em alguns momentos ou áreas da vida isso não tem tanto eco e não faz sentido. Há um tema dentro de mim sobre o qual passei os três últimos meses refletindo, dialogando com meus amigos mais íntimos. E sobre isso pensei mil e uma coisas. Ouvi todo tipo de conselho que se possa imaginar, elaborei caminhos complexos, e no fim das contas não cheguei muito longe.

Até que por esses dias, decidi parar com esse arsenal de recursos internos em posição de sentido, e relaxar. Me dei o direito de não saber a resposta, de não planejar, não conversar sobre isso com mais ninguém que apresente uma receita, não buscar alternativas... apenas não saber. Decide viver com a minha dúvida, conviver com a contradição posta e não fazer nada a respeito. Tem sido libertador.


quinta-feira, 30 de março de 2017

LOVE - um retrato da minha geração


Na semana passada assisti uma série da Netflix chamada "Love". O seriado se passa em Los Angeles e é sobre duas pessoas, ela, Mickey, e ele, Gus. Ambos na casa dos 30 e poucos anos. Mickey é produtora de um programa de rádio sobre conselhos sentimentais e terapêuticos apresentado por um idiota. Gus é professor de estrelas mirins no set de uma série de TV imbecil chamada Wichita.

É uma comédia, mas  os personagens são redondos e apesar dos estereótipos estarem presentes, isso não é explorado de maneira óbvia. Ela é uma garota linda, que experimentou diversos tipos de drogas, teve vários relacionamentos complicados, um histórico familiar bad; ele é um típico nerd, cuja autoestima foi forjada num gueto e sempre que tenta fazer amigos ou agradar alguém fora disso, se dá mal.

Para mim um dos aspectos mais interessantes dessa série é que ela dialoga sobre uma geração. E apesar de ser uma comédia, retrata muito bem um certo vazio que uma parcela importante dessa turma tem vivido.  Pessoas de classe média, mas que volta e meia tem dificuldades de pagar seus aluguéis, passaram pela universidade, tem um emprego que não sabem direito se gostam ou não, tiveram diversos relacionamentos, e não se encaixaram no esquema tradiconal casamento-filhos.

E além disso, algo que ficou bem evidente , principalmente na personagem da Mickey é que ela carrega um certo conformismo e uma certa deseperança com a vida. Tipo... olha para si mesma parecendo não ter ilusões. Sabendo que sua vida é aquilo mesmo, e suas falhas de caráter são evidentes e muito difíceis de mudar.

Apesar do nome, a série é e não é sobre o amor. Claro que tem o romance deles como pano de fundo. Mas as crises individuais de identidade das personagens, e seus reflexos no relacionamento são o grande X da questão. Ou melhor, acho que trata do amor de uma maneira muito complexa e diferente das ilusões românticas de gerações que nos antecederam. Por não terem ilusões quanto a si mesmos, por carregarem um certo grau de desconfiança a respeito de aspectos felizes da vida, também desconfiam do amor e as vezes até o sabotam.

Gosto de séries, filmes e livros que marcam um perfil geracional. Nos ajuda a entender um conjunto de questões e nos avisa que não estamos sozinhos em determinadas angústias. Recomendo muito a série "LOVE". É leve, inteligente e engraçada!

 

quarta-feira, 29 de março de 2017

Dores do cotidiano (crônica)


Desde sempre fora acusada do que não tinha culpa. O pai rígido dizia que caso algum homem se atrevesse com ela e suas irmãs, a culpa seria delas, que lhes teriam dado ousadia. Cresceu com isso, sendo agredida pelo mundo e pelo pai, contendo seus movimentos, altura da voz, olhando sempre para o chão. Casou-se. Teve filhos. Envelheceu. Deprimiu. Os remédios faziam parte da sua rotina. Permanecia num limbo de si mesma, mas nunca nem havia refletido sobre quem poderia ter sido na vida, se não fosse quem fosse.

Mas o ser humano não fica completamente imune a sua própria humanidade. Certo dia, envolve-se numa briga. Seu marido comprou um imóvel de um homem qualquer que entregou o bem sem as janelas. Ela se indignou com aquilo, questionou, disse que se não devolvesse as janelas, chamaria a polícia. 

O homem e sua esposa riram dela. E disse ele: "vai dar pra quem te quer". Lembrou do que seu pai fazia, de atribuir a culpa da atitude masculina a ela. Ficou envolta de indignação pela palavras daquele homem. Passou um mês remoendo a risada dele que ecoava em sua alma. Era como se aquele momento resumisse toda sua história de opressão.

Procurou a justiça. Contou sua história naquele órgão público, para alguém desconhecido. Narrou os fatos ocorridos naquela tarde como quem narra uma epopéia. E ao buscar justiça para aquele fato, na verdade, pediu socorro por toda a invalidez de sua vida. Não encontrou... quanto ao seu pai, cuja imagem pulsava dentro dela no presente, para a lei, tudo já estava num passado distante. Quanto a ofensa do homem, o remédio seria mais amargo do que a doença. Foi embora com a sua dor latente de volta ao seu cotidiano vazio de esperança.

segunda-feira, 27 de março de 2017

Não culpem as redes, o mundo sempre foi assim!!!


Sempre vejo gente reclamar que as redes sociais não representam a vida de forma eficaz. Que são superficiais, que as fotos são cheias de filtros e que todo mundo parece ser mais bonito e feliz do que realmente é. Tem também a ala militante, que vive convidando a gente para copiar e colar na timeline alguma coisa em relação ao tema da vez... e que também parece ser muito mais de luta do que realmente é... e volta e meia é criticada por outros militantes realmente "revolucionários".

Acho que tudo isso é verdade. Mas sinceramente não acho que seja um problema. Não vejo porque as redes deveriam ser exatamente iguais a vida real, pois isso nem seria possível. E ainda, há aspectos dessa tal vida real que eu, particularmente, gostaria de esquecer que existem.

Sou uma "postadora" assídua no Facebook e no Instragram, mas sou dessas que no geral, só postam coisas boas mesmo, fotos o melhor tratadas que meu celular de pobre permitir... e adoro acompanhar como as curtidas vão crescendo a cada minuto na foto postada. Adoro observar a assiduidade dos curtidores. Fico observando a curtida dessa ou daquela pessoa. E sinceramente, acho isso muito normal e até positivo.

Não vejo diferença nisso para o jeito de agir de outras gerações nas quais não havia as redes sociais da internet. Talvez as coisas fossem mais lentas. Mas me lembro de quando éramos crianças e nossas mães, tias e avós, quando recebiam visitas, adoravam mostrar seus longos albúns de fotografias, em ocasiões especiais, nas quais a família inteira se preparava para as fotos.

Com relação aos militantes políticos de internet, também não encontro novidade. Faz quase 17 anos que eu atuo na política, e sempre houve militante de ocasião, que nunca ia nas manifestações, nunca entregava um panfleto, mas tinha um discurso mega revolucionário quando aparecia numa reunião ou estava na mesa do bar. A diferença é que agora a gente consegue observar tudo isso de maneira mais clara.

Tenho estudado um pouco de história da arte, e contam os livros sobre o assunto que há 20 mil anos atrás, alguns dos desenhos rupestres nas paredes das cavernas eram feitos com  técnicas avançadíssimas. E pela noção de perspectiva de algumas obras, é possível perceber que mesmo antes do início da linguagem escrita, o ser humano não tinha uma racionalidade muito diferente da que temos hoje. Tinham seus rituais, produziam arte, cultivavam a esperança, lidavam com a natureza, transavam, amavam e provavelmente faziam mimimi também.

No fundo somos os mesmos, dos tempos das cavernas aos tempos das redes sociais. Na pré-história o que se pintava na parede provavelmente eram coisas importantes para o grupo retratado, não se pintava qualquer coisa. Por isso, acho injustiça colocar a culpa desse nosso ímpeto de querer retratar o nosso melhor, no Facebook ou no Instagram. 

Na verdade todo adulto queria ser mais feliz do que é. Todo militante queria ser mais líder do que é. Todo mundo queria ser mais bonito, não ter marca de espinha na cara, nem ruga, não queria ter barriga, nem braço gordo. Todo crente gostaria de ser mais espiritual do que é... enfim, a lista é infinita. Mas não é de hoje. A gente pode aceitar isso ou fazer coro com o saudosismo que afirma que "no meu tempo era tudo diferente...", o que geralmente não é verdade. Mudam os aspectos objetivos, a tecnologia avança, mas nossa essência é a mesma.

O que era diferente no tempo de quem diz essas coisas é que, em vários aspectos, o mundo era muito pior e mais difícil. Para ter notícias do seu crush, por exemplo, você precisava, as vezes, esperar semanas até receber uma carta ou qualquer notícia de terceiros, hoje em dia você marca ele entre os melhores amigos no face e estranha quando ele fica mais de 12 horas sem postar nada. Simples assim. Tem gente que acha o passado das cartas romântico, tem quem prefira mandar nudes nos tempos do agora. Não vou emitir minha opinião. Até porque já estou fugindo do tema.

Nem as pinturas rupestres, nem as obras gregas, nem a arte medieval, nem as obras literárias escritas ao longo de toda a história, nem programas de TV, séries e filmes, nem Facebook e nem Instagram são exatamente iguais a realidade. São representações, e por isso a retratam em parte, geralmente a parte boa. Só a vida real é a vida real, o resto é metáfora. Ainda bem. Aceitemos isso e usemos as redes com diversão e parcimônia!


Sobre os meus medos no domingo a noite...


Da mesma maneira que há uma mística que envolve os domingos de manhã de forma poética e positiva, como em Anunciação de Alceu Valença: "Que tu virias numa manhã de domingo"... para mim, há uma mística negativa a respeito dos domingos a noite.

É fato que nem sempre me senti assim, na infância, domingo a noite era sinônimo de ir à igreja, e a escola da segunda de manhã sempre foi um grande prazer. Por isso, essa mística negativa a qual me refiro, é algo mais recente, da minha mais ou menos vida adulta.

Eu realmente não sei se você, leitor, já sentiu medo no domingo a noite. Nunca conversei com ninguém sobre este meu problema e realmente não sei se ele é só meu. Mas, por muito tempo, quando o dia de domingo ia se despedindo, esse sentimento começava a me visitar.

Talvez tenha a ver com a minha profissão, segundas-feiras em delegacias são dias difíceis, sabemos que quase sempre, o primeiro dia útil da semana, será um dia corrido, complicado, com muitos crimes do fim de semana para atendermos e resolvermos.

Então, a ansiedade no domingo, desde que assumi meu concurso na polícia, sempre me acompanhou, eu mal conseguia aproveitar o fim do meu descanso, porque lá estava ela, uma tristeza misturada com inquietação, algo irracional, um sofrer por antecedência.

Mesmo quando eu passava minhas noites de domingo acompanhada de alguém querido, ainda assim, eram noites difíceis. Sempre dormi mal nestes dias. O que atrapalhava consideravelmente minha qualidade de vida... pois já iniciava a semana com severas dificuldades.

No entanto, esse é um sentimento irracional, pois é sofrer por antecipação e por algo que estamos acostumados a fazer. Mas a sensação era de fim, de morte. Talvez causado pelo contraste da minha vida feliz nos fins de semana, com os dias difíceis de trabalho.

Aos poucos, no último mês, em que me mudei para a cidade onde trabalho, numa casa perto do local, não necessitando enfrentar o trânsito da segunda de manhã e por uma série de cuidados que venho tendo comigo, esse sentimento de terror no domingo a noite, vem diminuindo, ficando quase inexistente. Mas é sempre bom estar atenta.

sexta-feira, 24 de março de 2017

Segundo a segundo (poema)



No passar dos dias,
No entender a história,
No ajuste da rotina,
 No avançar da hora...

A cada pensamento,
Estado, conexão...
Estabelecia a vida,
Selava transformação!

No ritmo do Universo,
Segundo a segundo,
Enquanto enxergava a si mesma,
Mudava o mundo!!

quinta-feira, 23 de março de 2017

Cartas de Perdão



Nos meus estudos filosóficos percebo que quando cada um dos autores apresenta seu pensamento, todos eles, dentro de seu contexto histórico e social, apresentam verdades. Da mesma maneira, com raras exceções, sempre que há divergências entre pessoas e paramos para ouvir ambas as partes, nas duas versões encontramos verdades.

E quando nós mesmos estamos diante de um conflito, se formos muito honestos e deixarmos as paixões de lado, as expectativas desleais que nos envolvem fora da questão, utilizando a empatia, também seremos capazes de ver o lado do outro.

Empatia é o primeiro passo para a suavização de qualquer conflito. Não é uma tarefa fácil. E nem sempre temos forças para colocá-la em prática. Volta e meia estamos tão destruídos por dentro, numa crise pessoal tão profunda, com a autoestima abalada, que este exercício passa a ser tarefa impossível.

A empatia é a tarefa racional em direção a um processo mais complexo e transcendental, que é o perdão. Ao longo da vida, todos nós acumulamos muitas mágoas, e isso, de certa maneira, vai moldando a nossa identidade. Comigo não foi diferente. 

Certa vez, a beira de uma depressão, em 2015, pedi ajuda a uma amiga que trabalha com terapias alternativas para vencer minhas dores. Contei a ela as razões da minha angústia. Então, ela me propôs um exercício que denominou "cartas de perdão". 

Explicou-me que cada uma das minhas angústias eram geradas por mágoas, e que essas mágoas se acumulavam na minha identidade, trazendo-me uma frequência muito ruim, sufocando minhas alegrias, minha espontaneidade diante da vida. 

Então me propôs que fizesse cartas para cada pessoa com a qual eu tivesse assuntos mal resolvidos, tanto aquelas que haviam me machucado, como também as que eu machuquei. E que narrasse a história, colocasse no papel a minha versão dos fatos, mas que no fim da carta, que eu perdoasse a pessoa, pedisse perdão e me perdoasse.

Questionei o método. Perguntei porque eu deveria pedir perdão diante de uma situação na qual eu não me considerava culpada, perguntei ainda porque eu me perdoaria também diante disso. Então ela me explicou que nada nunca é unilateral, e que mesmo como pólo passivo de uma situação, você estava lá, não evitou as mágoas, de alguma maneira, por mais que tenha se sentido vítima de algo, houve de sua parte legitimação da situação. Disse-me para usar a empatia. Colocar-me no lugar do outro e deixar o perdão fluir.

No entanto, propôs ainda que ao finalizar a carta, feita a lápis, que eu a queimasse, porque a importância do perdão era para que as mágoas se deslocassem do meu ser. E assim eu fiz, e como mágica, depois de escrever muitas e muitas cartas, mais de 400, fui vencendo as minhas dores. Perdoei pessoas que me proporcionaram momentos tristes em todas as etapas da vida, pedi perdão por culpas que estavam ocultas da memória, mas que vieram a tona com este exercício. Pessoas próximas, pessoas distantes, uma a uma. E vi relações perdidas se consertarem por isso.

Hoje, adotei isso na rotina da minha vida, "as cartas de perdão", procuro não deixar passar, não acumular pesos. E sempre que tenho a oportunidade de contar esse meu processo para alguém, o faço, porque tem uma força terapêutica e transcendental, algo de ruim se desloca de dentro da gente através do perdão, e dá lugar a vida novamente.

quarta-feira, 22 de março de 2017

Sonhos e seus significados


A temática dos sonhos sempre me interessou. Quando criança, eu questionava qual realidade era a verdadeira, se quando eu estava acordada ou se quando eu dormia e sonhava. Meus pais são bastante atentos aos sonhos deles. E em minha formação cristã, os sonhos sempre tiveram um lugar de reverência, já que há inúmeros relatos dos sonhos como profecias na narrativa bíblica.

Jung, psicólogo suiço do século passado, ao longo de sua carreira, encontrou 4 tipos de significados para os sonhos:


"1) O sonho representa a reação inconsciente frente a uma situação consciente. Uma determinada situação consciente é seguida por uma reação do inconsciente na forma de um sonho, trazendo conteúdos que – de modo complementar ou compensatório – apontam claramente para uma impressão que se obteve durante o dia. É evidente que o sonho jamais teria se formado na ausência de determinada impressão obtida no dia anterior.


2) O sonho representa uma situação que é fruto de um conflito entre consciência e inconsciente. Nesse caso, não existe uma situação consciente que pode, em maior ou menor grau, ser responsabilizada pelo mesmo, e sim, lidamos aqui com certa espontaneidade do inconsciente. O inconsciente acrescenta a uma determinada situação consciente uma outra situação, a qual difere de tal modo da situação consciente que se forma um conflito entre ambas.

3) O sonho representa a tendência do inconsciente cujo objetivo é uma modificação da atitude consciente. Nesse caso, a posição oposta assumida pelo inconsciente é mais forte do que a posição consciente: o sonho representa um declive que se origina no inconsciente e vai em direção à consciência. Trata-se de sonhos especialmente significativos. Podem transformar alguém que assume uma determinada atitude por inteiro.


4) O sonho representa processos inconscientes que não evidenciam uma relação com a situação consciente. Sonhos dessa espécie são muito peculiares e, devido ao seu caráter estranho, não podem ser interpretados facilmente. O sonhador se admira tanto por sonhar algo assim, pois nem mesmo uma relação condicional pode ser estabelecida. Trata-se de um produto espontâneo do inconsciente que porta toda a atividade e é altamente significativo. São sonhos imponentes. Sonhos que os primitivos designam de 'sonhos grandes'. São de natureza oracular, 'somnia a deo missa' (sonhos enviados por Deus)."

Recentemente, passei a fazer um diário anotando os meus sonhos, e percebi que neles, havia padrões. Mesmo em noites diferentes, meus sonhos traziam mensagens similares em alguns determinados períodos, com os mesmos personagens, mudando somente a forma de apresentar as mesmas mensagens.

Com o tempo, ganhei a habilidade de lembrar dos sonhos que tenho todas as noites. Alguns mais relevantes, outros nem tanto. Mas nos últimos meses, raramente tive sonhos bons. Quase sempre, as metáforas trazidas durante a noite, representavam conflitos, conforme descreve Jung, no item 2. Passei meses sonhando com guerras, com brigas, com perdas, com mudanças forçadas e indesejadas.

Mas na última noite tive uma grata surpresa, sonhei que estava num lugar cercado por montanhas e que no caminho da trilha que eu seguia encontrei uma ponte, uma ponte longa, alta. Quando olhei para baixo, muito distante havia um rio. Então, alguém que não conheço estava do outro lado da ponte e me dizia "venha, atravesse", então eu olhei para frente, dei os primeiros passos na ponte, senti se a ponte estava firme, e apesar de balançar um pouco, era segura. E então atravessei a ponte e cheguei ao outro lado. E o sonho acabou.

Esse sonho me pareceu um exemplo do item 4 de Yung. Não que eu acredite que o mesmo seja necessariamente "oracular", mas sem dúvida foi um "sonho grande". Acordei com uma sensação de que o meu sonho metaforizou uma mudança significativa em minha vida. Uma marca da minha imensa vontade de seguir em frente e superar alguns medos, limitações, mágoas. Ao pesquisar sobre o significado de sonhar com pontes e suas travessias, li óbvias significações positivas.

Prestar a atenção em nossos sonhos, pode ser uma grande chave de entendimento sobre nós mesmos. O livro de Jung que usei neste texto se chama Seminário sobre Sonhos de Criança. É um livro grande, de cerca de 700 páginas, de leitura simples, e que ainda não li inteiro. Mas para aqueles que desejam se aprofundar nesta temática, recomendo.



terça-feira, 21 de março de 2017

A impossibilidade do lema "Ordem e Progresso"


Nos últimos tempos tenho estudado assuntos nos quais nunca me aprofundei. Um deles é a Filosofia. E tem sido uma experiência muito gratificante entender a história do pensamento da humanidade. As vezes encontro dificuldades, mas tenho persistido. É interessante perceber que, assim como os filósofos percorreram um caminho que ao longo dos séculos permitiu a formulação humana se tornar mais complexa, individualmente também passamos por isso. A infância, a adolescência, a juventude e a vida adulta são fases nas quais em cada uma delas temos condições de ver o mundo de uma maneira, lançando mão de elementos e percepções diferentes.

Nessa semana no meu programa de estudos filosóficos me deparei com o pensamento de Immanuel Kant, filósofo alemão, cujo pensamento se tornou uma das principais colunas do Iluminismo. O autor afirmou que "O Iluminismo é a saída do homem de sua menoridade, da qual ele é o próprio responsável. A menoridade é a incapacidade de fazer uso do entendimento sem a condução de um outro. O homem é o próprio culpado dessa menoridade quando sua causa reside não na falta de entendimento, mas na falta de resolução e coragem para usá-lo sem a condução de outro. Tenha coragem de usar seu próprio entendimento - esse é o lema do Iluminismo".

Confesso que as elaborações do filósofo alemão dialogaram muito comigo. Inspirada em seu pensamento, fiz o texto de ontem "Assuma a Responsabilidade". Concordo com ele que é preciso coragem para ser quem somos, para assumir a responsabilidade pela nossa própria vida.

No entanto, esta mesma base filosófica foi o que deu origem ao pensamento de Comte, principal expoente do Positivismo. Que até certo ponto, faz sentido, na direção de que a humanidade precisa assumir seu destino de forma racional. No entanto, leva isso até as últimas consequências e acaba por se tornar uma ideologia, apresentando uma proposta de mundo engessada e perfeccionista.

 Os positivistas acreditam que "nenhum progresso pode efetivamente se realizar se não tender finalmente para à evidente consolidação da ordem". E seguem dizendo que "a ideia de ordem está ligada a ideia de hierarquia como sistema de subordinação rígida da parte ao todo, do inferior ao superior, do processo ao resultado, e isso dá a chave da famosa palavra de ordem: pelo progresso para a ordem".

Ocorre que nem coletiva e nem individualmente essa direção absolutamente ordenada é possível de ser colocada em prática. Essa maioridade atingida pela razão, esse assumir a responsabilidade pelas próprias escolhas são questões importantes e devem ser perseguidas por nós. Mas não podem tornar a vida linear e nem desumana. E esse é um risco que se corre quando acreditamos que devemos abandonar a espontaneidade da vida, substituindo tudo por foco, objetivo e racionalidade.

No meu atual momento, tomei uma série de decisões baseadas em formulações racionais e não me arrependo delas, acho que já não era sem tempo. No entanto, vez por outra, elementos de outros âmbitos vem a tona e me fazem questionar tais decisões e as vezes até negá-las. Quando me encontro num momento como este, procuro acalmar minhas emoções e não abafá-las, mas aprender com elas, escutá-las. Isso não me faz menos adulta, ou mais frágil, ao contrário, me faz plena, mais complexa e mais intensa. Porque assim como sou minha razão, também sou meus sentimentos.

O que nos torna humanos, além de nossa capacidade racional, é também a complexidade do nosso sentir, e até mesmo as contradições que residem em nosso coração. Da mesma maneira que tomamos decisões importantes para nossas vidas com base na razão, muitas vezes, decidimos seguir a esperança, e ambos os caminhos são legítimos. E o equilíbrio disso (ou não) nos faz ser quem somos, nos faz humanos.

segunda-feira, 20 de março de 2017

Assuma a Responsabilidade


O mundo está cheio de mecanismos para que nós não nos sintamos aptos para realizarmos muitas coisas. Estamos mergulhados numa alienação fundamentalmente de nós mesmos. Não somos ensinados a entender nossos próprios mecanismos de funcionamento, em todas as dimensões de nossa vida.

 A medicina tradicional do Ocidente, por exemplo, de certa maneira nos alienou do corpo. Criou remédios capazes de simplesmente cortar sintomas, isso é, os avisos que o corpo dá ao cérebro para dizer que há alguma coisa errada. Quando temos uma dor de cabeça, ao invés de investigá-la, procurar entender sua causa, tomamos um analgésico e pronto, ela não existe mais. Mas ao mesmo tempo que o incomodo desapareceu, vai com ele nossa chave de entendimento sobre o que estaria acontecendo.

Assim como no exemplo acima, poderíamos elencar muitos outros... o preconceito e a falta de acesso a consultórios de psicologia; a quantidade infinita de estímulos externos que recebemos todos os dias, que acabam por nos distraírem de reflexões mais elaboradas; nossa incapacidade de realizarmos a manutenção no que tange necessidades cotidianas, como lavar roupa, cozinhar, limpar uma casa etc.

Atendi um caso típico hoje no trabalho em que a mulher dizia que moravam no mesmo terreno seis mulheres adultas e algumas crianças e que o marido de uma de suas filhas estava colocando em risco a vida de todas elas, e "sendo apenas mulheres, não tinham como se defender dele". Fizemos o procedimento para tirá-lo da casa. No entanto, discordo completamente quanto a afirmação que ela fez. Imaginem só, se seis pessoas do sexo feminino, não seriam capazes de enfrentar um cara sozinho. Tenho certeza que com um pouco de coragem, poderiam tê-lo expulsado de sua casa.

Ocorre que fomos ensinados a não assumir nossas próprias vidas. Nossa felicidade está sempre depositada em questões externas: "o amor verdadeiro que nos redimirá"; "os filhos que nos trarão completude"; "a profissão dos sonhos que um dia alcançarei"; "o Estado que não funciona e precisa cumprir seu papel" etc.

Não sou liberal, e não acredito que as pessoas sejam exclusiva e individualmente responsáveis pelo seu sucesso ou seu fracasso. Não é essa a tese que estou aqui defendendo. Acho que o Estado tem sim que cumprir seu papel e promover políticas públicas que facilitem a vida das pessoas. Mas o que tenho assistido na prática não é isso. Vejo gente infantilizada que não assume o mínimo de suas responsabilidades enquanto ser humano neste mundo. Inclusive a religião também fomenta tal mecanismo de imobilidade.

Não temos responsabilidade com nossa saúde, no cuidado da alimentação, na prática de exercícios físicos etc; não temos responsabilidade com a lutas sociais que nos dizem respeito, quase nunca nos envolvemos em questões políticas; não temos responsabilidade com nosso futuro tanto nas questões coletivas de sustentabilidade e preservação do meio ambiente, como também nas questões individuais e profissionais, deixando sempre a vida nos levar; não temos responsabilidade com nossa vida amorosa, sempre negociando valores por medo de ficarmos sós.

Tenho certeza que a maior parte das ocorrências policiais poderiam ser evitadas caso as pessoas tivessem consciência da importância de cumprirem seus papéis na sociedade. Caso utilizássemos o recurso interno que já temos. Caso conhecêssemos e articulássemos nossos próprios mecanismos já existentes. Mas a verdade é que estamos sempre a espera.

sexta-feira, 17 de março de 2017

A Viagem (parágrafos poéticos)


Pelo seu coração passava um conjunto de sentimentos infindos. Nunca havia olhado tanto para si, percebido de forma tão sensível suas fraquezas, o que lhe causava dores e delícias intensas e constantes. 

Também nunca tinha explorado daquela maneira suas virtudes, o cultivo da disciplina na qual depositava esperança de plena liberdade. Estava numa montanha-russa de si mesma. Do calculismo ao drama, da comédia ao romance, em frações de segundos. Vivendo em poucos instantes vidas inteiras.

Queria encontrar um centro, um lugar independente, que minimizasse suas dores circunstanciais, que controlasse os deslumbramentos promovidos pelas delícias passageiras. Por tanto tempo o outro fora sua busca, agora algo lhe dizia que a chave estava consigo, nos seus próprios porões escuros.

Mas sua saga apresentava diversas resistências e tentações... cada passo um enigma a ser desvendado. Em cada pedaço de seu trajeto, uma tentação lhe fazia uma visita, todos os seus fantasmas estavam a postos, teria que libertá-los um a um do purgatório de suas mágoas. E que imensa tentação era estar diante deles, por pouco resistia, por pouco não sucumbia.

No entanto, sabia que, paradoxalmente, não havia caminho fácil e curto para chegar a si mesma. Entendia que essa seria sua viagem mais extensa, mais intensa, mais complexa, e também mais solitária.



quinta-feira, 16 de março de 2017

O Ciclo da Violência Doméstica


A lei 11.340, conhecida popularmente como Lei Maria da Penha, aborda cinco tipos de violência doméstica contra a mulher: violência física, violência sexual, violência moral, violência psicológica e violência patrimonial.

Todos os dias, devido a minha profissão, eu atendo mulheres vítimas de violência doméstica na delegacia da mulher. E com raras excessões, as histórias delas são muito similares. Algumas chegam a sofrer todas as modalidades deste crime. E tem suas autoestimas destruídas devido a violência que sofrem.

No entanto, apesar de a Lei Maria da Penha ser a lei mais conhecida do Brasil, não é respeitada enquanto ordenamento jurídico. Há muitos discursos simplistas que afirmam que não funciona, que a legislação prejudica os homens, que muitas mulheres se aproveitam. Adotando como regra o que é excessão.

Um outro aspecto que traz fama negativa para a lei, é o fato de que muitas mulheres que conseguem dar um passo e fazer a denúncia contra seus maridos, companheiros, namorados etc, desistem do procedimento e retomam suas relações com os homens que as agrediram. E acabam sendo agredidas novamente em outro momento.

Acontece que apesar de a legislação existir, e funcionar relativamente bem em relação as medidas protetivas, que prevêem o afastamento do homem que agride da mulher agredida, a saída dele do lar quando for o caso e a proibição de manter qualquer tipo de contato, a lei é apenas a ponta do iceberg.

Não vou me aprofundar aqui a respeito de todos os aspectos misóginos e machistas que a nossa sociedade impõe, que são infinitos. Mas há um ponto central que me chama a atenção no que tange o atendimento às mulheres vítimas deste crime em questão: o ciclo da violência doméstica.

Todo casal que inicia uma relação, teoricamente, começa bem, se respeitando, se gostando, sonhando com uma vida a dois. Com o tempo, devido aos mais diversos elementos, começa um estranhamento entre os dois. Então, em muitos casos, se inicia a violência, que muitas vezes é recíproca, mas o homem se sobressai como agressor devido a elementos sociais e físicos que o favorecem. Então, se distanciam, se separaram. Após um tempo, as coisas se acalmam e vem a fase do perdão, no qual todos prometem mudança de comportamento. Mas com o tempo, novamente os estranhamentos ocorrem e começa tudo de novo. Isso tipicamente costuma ser potencializado por substâncias entorpecentes, como as bebidas alcoólicas.

Este é o ciclo da violência doméstica, e o que o alimenta, entre muitas outras coisas, é a esperança que as pessoas depositam em seus relacionamentos. Todos querem amar e serem amados e acabam por negociar a si mesmos em tentativas ilusórias. Em relações que muito dificilmente se transformarão. Pode haver mudança, mas elas não são a rotina destes casos.

Em meus atendimentos, procuro explicar para as mulheres a importância de sair deste ciclo, principalmente aquelas que estão nele há muito tempo, pois a cada volta deste círculo vicioso, os danos vão se agravando. É preciso ter esperança, é importante persistir nas relações, mas é necessário discernimento para perceber onde termina a relação e começa o crime.

quarta-feira, 15 de março de 2017

A Sagrada Noção de Coletividade


O rabino Nilton Bonder, o qual já citei em vários textos aqui, em sua obra "O Sagrado", escreve sobre os segredos que os livros e teóricos da autoajuda relatam para se ter sucesso.

Segundo o autor a obra surgiu de seu espanto diante do sucesso de livros que oferecem um segredo capaz de mudar a vida das pessoas. Para ele, a busca incessante pela plena satisfação do desejo leva ao que ele chama de ‘religião dos indivíduos’, tão em voga na atualidade. Em nome da autorrealização, o homem se coloca no centro de um universo no qual ele é um sujeito especial, que merece consumir indiscriminadamente e acumular dádivas por suas conquistas.

Para Bonder, o verdadeiro segredo, camuflado pelos livros de autoajuda, é ter consciência dessas limitações; é questionar o desejo como fonte absoluta de bem-estar, ao invés de simplesmente tentar preenchê-lo. “Pensar que somos o centro do universo só nos fez intolerantes e ignorantes no passado”, afirma. “Esse é um engano trágico que mais cedo ou mais tarde levará à frustração e à descrença”.

Bonder denomina esta percepção quanto a um segredo por trás do segredo, de Sagrado. Que parte, na verdade, da inversão da lógica dos segredos postos. Pois, se os segredos difundidos levam a satisfação do ego e dos desejos, o sagrado parte de uma percepção em ser parte de um todo, da minimização dos infantilismos egóicos, de abrir mão do sentimento de ser o centro das atenções.

Disserta que "não somos um fim, somos um meio pelo qual se dá um projeto muito além de nossa biografia individual. E essa não é uma má notícia. Ser parte e não a integralidade nos aproxima da realidade e possibilita a experiência do sagrado – de ser especial não como algo isolado, independente, mas inserido na Árvore da Vida”

O que o autor chama de Sagrado, poderíamos chamar, sem riscos de sentido, de elemento humano ou humanização de nossa consciência, como seres coletivos. Acontece que o que ele propõe não é fácil e não é simples. Estamos acostumados com as receitas simplistas propostas pela sociedade.

No fundo, nossa racionalidade é de não envolvimento, de receitas fáceis, e fundamentalmente de individualismo. Queremos brilhar, ser o todo. E desejamos que as partes estejam a nosso serviço.

Portanto, o que Bonder chama de sagrado, é mesmo sagrado, mesmo que numa perspectiva apenas humanista. É a cultivação de valores para que o mundo seja um lugar melhor para se viver. Recomendo o livro.

terça-feira, 14 de março de 2017

Dialética: o tesouro que a esquerda abandonou?



Sócrates, Platão, Aristóteles, Hegel, Engels e Marx foram os principais filósofos a refletirem sobre a dialética. A dialética é a estrutura contraditória do real, que no seu movimento constituído passa por três fases: a tese, a antítese e a síntese. Ou seja, o movimento da realidade se aplica pelo antagonismo entre o movimento da tese e o da antítese, cuja contradição deve ser superada pela síntese.

Além da contrariedade dinâmica do real, outra categoria fundamental para entender a dialética é a totalidade, pela qual o todo predomina sobre as partes que o constituem. Isto significa que as coisas estão em constante relação recíproca, e nenhum fenômeno da natureza  ou do pensamento pode ser compreendido isoladamente fora dos fenômenos que o rodeiam. Os fatos não são átomos, mas pertencem a um todo dialético e como tal fazem parte de uma estrutura.

Portanto, a dialética como método de análise tanto da natureza, quanto das ações humanas, parte do princípio que não há mudanças ou transformações sem que haja um grande envolvimento das partes e sem que suas naturezas sejam modificadas. Uma vez síntese, nem tese e nem antítese existem mais, passam a doar suas essências para a constituição de um todo.

Segundo Karl Marx, existem três leis da dialética:

1 - Lei da passagem da quantidade à qualidade - o processo de transformação das coisas se faz por "saltos". Mudanças mínimas de quantidade vão se acrescentando e provocam, em determinado momento, uma mudança qualitativa.

2 - Lei da interpretação dos contrários - a dialética considera a contradição inerente a realidade das coisas. E justamente a contradição é a força motriz que provoca o movimento e a transformação. A contradição é o atrito, a luta que surge entre os contrários. Mas os dois pólos contrários são também inseparáveis, e a isso chamamos unidade dos contrários, pois mesmo em oposição estão em relação recíproca. Por estarem em luta, há a geração do novo.

3 - Lei da negação da negação - da interação das forças contraditórias em que uma nega a outra, deriva um terceiro momento: a negação da negação, ou seja, a síntese, que é o surgimento do novo. Tese, antítese, síntese, eis a triade que explica o movimento do mundo e do pensamento.

E segundo o que aprendi desde o início da minha militância na adolescência, a dialética é a pedra angular da esquerda, conceito ampliado por Marx, constituindo o materialismo dialético e o materialismo histórico. Razão pela qual me apaixonei pela política. Uma perspectiva que vê o mundo de maneira dinâmica, em constante transformação e interação, ganhou meu coração. 

No entanto, o que tenho assistido nos últimos tempos não tem nada a ver com a dialética, com considerar a contradição a força motriz da evolução, com a valorização dos argumentos para a construção de um mundo diferente. Muitos dos meus conhecidos de esquerda no último fim de semana crucificaram o professor Leandro Karnal devido a sua foto com juiz Sérgio Moro num jantar, postado nas redes sociais. Confesso que fiquei assustada com a repercussão. Pois tais manifestações não tiveram nenhuma relação com a esquerda que me apaixonei, foi somente ódio.

Na minha trajetória de militância, lembro que uma das coisas mais interessantes que fazíamos era dialogar com os adversários. Que por mais que tivessem opiniões contrárias, estavam posicionados em cenários similares com os nossos, e portanto, acabavam por ter sentimentos também similares. No tempo de movimento estudantil fiz muitos amigos com opiniões políticas divergentes das minhas, e isso era algo tranquilo, carregado de empatia e afetividade, e também explicado pelo processo dialético.

Mas Leandro Karnal não foi o único... há tempos tenho percebido diversos movimentos nesta mesma corrente, posições radicalizadas no pior sentido. Muitas pessoas com esteriótipos de intelectuais, "entendidos" de determinados assuntos que afirmam suas ideias de maneira muito intolerante. Isso tanto na militância partidária, como também nos segmentos identitários. E que quando alguém discorda de seus argumentos, acaba se tornando persona não grata.

Vejo isso com relação a algumas companheiras que discutem o feminismo, de maneira intolerante, personificada, sem uma leitura de que somos construções sociais, crendo que todos deveriam ter o mesmo entendimento que elas da questão, como se sua utopia particular tivesse que ser algo absorvido por todos imediatamente, sem perceber que isso só é possível de forma coletiva e com alguma dose de paciência histórica. Vejo isso também no que tange a discussão do racismo e da apropriação cultural, quando alguns discursos desejam proibir brancos de usarem turbantes. Para mim isso não faz sentido, e não vejo como tais proibições podem contribuir com a luta por uma sociedade melhor.

Sinceramente, esses que quiseram crucificar Karnal por um jantar com Moro, são bem parecidos com aquilo que mais criticam. Tais colegas não se diferem muito de "bolsonaros" às avessas, e não acredito que seriam capazes de liderar nosso país na construção de uma sociedade mais justa. Eu gostaria de jantar com Sérgio Moro, e se eu dissesse aqui o que realmente penso sobre ele, neste clima de ódio, eu seria proibida de participar de qualquer movimentação promovida pela esquerda.

Tenho mais medo dessa gente intolerante travestida de intelectual, do que de intolerantes assumidos. Temo que a esquerda tenha aberto mão de seu bem mais precioso, sua capacidade reflexiva, relacional, empática e de diálogo, expressas no processo dialético. E se isso for verdade, nos resta pouca esperança.




segunda-feira, 13 de março de 2017

A importância dos mitos para o desenvolvimento humano






                          Mitos são narrativas utilizadas por diversos povos para explicar fatos da realidade e fenômenos da natureza, as origens do mundo e do homem, que não eram compreendidos por eles. Os mitos se utilizam de muita simbologia, personagens sobrenaturais, deuses e heróis.
                       O antropólogo Claude Lévi-Strauss afirma que todo mito deve obedecer a três atributos: tratar de uma questão existencial, ser constituído por contrários irreconciliáveis e proporcionar a reconciliação desses pólos para acabar com a angústia.
                      Mitos são modelos que se acham nas raízes do desejo humano. Tanto que a pedra fundamental da psicanálise se encontra na interpretação feita por Freud do mito de Édipo. O que faz parecer que o mito é uma forma indispensável do existir humano. Do mito não se acham explicações exclusivamente racionais, mas na realidade vivida, portanto pré-reflexiva das emoções e da afetividade.
                      Para Mircea Eiade, filósofo romeno, uma das funções do mito é fixar os modelos exemplares de todos os ritos e de todas as atividades humanas significativas. O mito é o ponto de partida para a compreensão do ser. E de alguma maneira, os gregos, principal referencial da formulação mitológica, migraram da mitologia para a filosofia. 
                     No entanto, ao longo da história do pensamento, houve quem afirmasse que a evolução da humanidade passava pelo abandono das formas míticas. E penso que este conceito, desenvolvido no positivismo, influenciou nossa racionalidade de maneira negativa.
                Uma vez em diálogo com um professor de filosofia, ele afirmou, curiosamente, que se posicionava contrário ao ensino de filosofia para crianças e adolescentes no ensino básico e no ensino médio, dizendo que com esse público, deveria ser trabalhado a interpretação dos mitos e não os conceitos da filosofia em si. 
                    Creio que ele tem razão. Nossa capacidade de abstração vai se tornando mais complexa ao longo da vida, e quando mais capacidade interpretativa desenvolvermos, mais será possível que entendamos novos conceitos. É necessário uma determinada maturidade para entender os conceitos filosóficos que, no geral, ainda não alcança as crianças e adolescentes.
                       No entanto, aqui, quero pedir uma licença literária, para tratar da questão não somente falando do mito em seu conceito strito, mas de contos, literatura, estórias, parábolas etc. Creio que se em nossa formação houvesse um foco no desenvolvimento da capacidade de interpretação, do entendimento de símbolos, e das relações disto para com a nossa própria trajetória, estaríamos mais prontos para compreender as grandes questões da humanidade expressas na filosofia.
                     Tenho assistido uma série que se chama "Upon Once a Time" (ou "Era Uma Vez"). O seriado tem como foco os contos de fadas, e procura articular todos eles numa mesma narrativa, trazendo diversas lições, algumas mais simplistas, outras mais complexas, mas que desnudam a vida real usando os contos de fadas como metáfora.
                   Na minha infância, meus pais trabalhavam comigo e com meus irmãos, muita literatura, principalmente Monteiro Lobato, contavam estórias antes de dormirmos, e acho que isso nos tornou muito sensíveis e interpretativos.
                       Há pouco tempo li um livro "As Mulheres que Correm com os Lobos" de Clarissa Pinkola Estés. E a autora desenvolve diversas questões que permeiam o Universo feminino através de arquétipos retratados em contos antigos de mulheres tribais, cujas personagens enfrentavam sagas que nos ensinam grandes lições sobre empoderamento e trajetória femininos.
                     Acredito que hoje temos uma sociedade cada vez mais literal, cujos rituais tem se esvaziado de sentido. E creio que essa literalidade pode ser parte das respostas quanto aos nossos vazios, nossas identidades fragmentadas, fragilizadas e vulneráveis. Mitos e seus derivados, através de metáforas, nos fornecem referenciais universais da trajetória humana.
                     E assim como os gregos enquanto sociedade passaram da mitologia para a filosofia, penso que, individualmente, isso também faz sentido. Alguém que tenha uma capacidade interpretativa, uma identidade cujos símbolos são fortes, que entenda e respeite seus próprios rituais de passagem, que tenha em si fruição mediante a observação da arte, com referenciais bem consolidados, terá muito mais condição de ter uma racionalidade melhor constituída na vida adulta e desenvolver mais recurso interno para enfrentar os grandes dilemas de sua própria história.
                    Portanto, a consciência mítica é parte fundamental da trajetória humana e a base para o entendimento filosófico e o desenvolvimento da razão. E por isso, talvez não haja mesmo necessidade de ter mais aulas de filosofia nas escolas, mas sim, mais contação de estórias em todos os lugares.

sexta-feira, 10 de março de 2017

O Senso Comum e o Bom Senso


Nos tempos de facebook e outras redes sociais, em que todos somos instituições midiáticas em nós mesmos, podemos observar pessoas das mais diversas personalidades e formações comentando inúmeros assuntos. No entanto, passamos a ser vastos como oceanos, mas profundos como pires. 

Sempre que há um assunto do momento, seja um fato socialmente relevante ocorrido, um dia comemorativo, um crime que choca a sociedade, todo mundo desanda a fazer "postagem", colocando sua opinião. Ocorre que a maior parte das opiniões sobre as coisas estão contaminadas pelo senso comum. E este senso não é refletido, está misturado a crenças e preconceitos, um conhecimento não crítico, sujeito a incoerência e conservadorismo.

Um dia, conversava com um amigo sobre quantos assuntos seríamos capazes de conversar com alguma profundidade mínima. Ele, contou que de sua parte, não chegaria a dez, e eu forçando a barra, contei sete. Contudo, o problema do exercício opinativo construído a partir do senso comum não está em si mesmo,  está no fato de que ele é um serviçal de algo muito mais poderoso, a ideologia.

Segundo Marilena Chauí, a ideologia é um conjunto lógico, sistemático e coerente de representações e de normas e regras que indicam e prescrevem aos membros da sociedade como devem agir, o que devem valorizar, o que devem sentir e o que devem fazer, isso de acordo com interesses da classe dominante, ocultando opressões. Como concepção de mundo, a ideologia tem a função de atuar como cimento da estrutura social. Quando incorporada ao senso comum, ela atua para estabelecer o consenso, conferindo hegemonia a uma determinada classe.

A ideologia se caracteriza pela naturalização. Para que sejam consideradas naturais as situações que na verdade são produtos da ação humana historicamente construídos. Portanto, o senso comum é uma grande expressão deste processo. Mas então, de acordo com essa reflexão sobre senso comum que aqui escrevo, não poderíamos emitir opiniões a não ser que estas fossem frutos de erudição? Não é bem assim.

Oferecer opiniões é próprio do ser humano, que carrega diversas formas de conhecimento. Não é apenas o saber adquirido a partir do estudo e da escola formal que importam. Há saberes intuitivos importantíssimos. Há riqueza na cultura popular e nas diversas formas de expressão humana. Sejam elas expressas nas redes sociais, na mesa do bar ou na festa de família. É inerente a nossa capacidade de análise e valoração das coisas.

Mas o marxista italiano Gramsci nos oferece uma luz que pode resumir a questão. Diz que "o bom senso é o núcleo sadio do senso comum". É com bom senso que pais e mães aconselham filhos e filhas mesmo diante de situações que nunca viveram. É com bom senso que intuímos que algo está errado e usurpa nossa identidade, e não necessariamente isso se dá por um estudo profundo dos fatos.

Não precisamos ser eruditos em todos os assuntos, mas é preciso que vigiemos nossos corações para que não caiamos num discurso contaminado de preconceito e opressão. O bom senso é um instrumento balizador da vida. Um conjunto de valores que também adquirimos historicamente, mas não a partir do que se espera de nós numa sociedade opressora, mas a partir da vivência, das relações saudáveis que estabelecemos. Vivamos o bom senso.

quinta-feira, 9 de março de 2017

A Linguagem como Máquina do Tempo


 

A capacidade de abstração é uma das principais características humanas. Abstração é a ação de isolar mentalmente um elemento ou uma propriedade de um todo, para considerar individualmente. 

Na arte pré-histórica, através das pinturas rupestres, isso é, nas paredes das cavernas, é possível perceber a capacidade humana de abstrair, quando ao observar um objeto o ser humano consegue representá-lo através de uma imagem.

A linguagem nada mais é do que uma forma complexa de abstração. Ao ler este texto e interpretar estes símbolos representados por cada letra aqui, você está abstraindo, caso não o fizesse, estas letras seriam apenas manchas pretas sem sentido. Segundo Gusdorf "a linguagem fornece a senha de entrada no mundo humano".

Portanto, o ser humano constrói a linguagem recortando sua realidade e nomeando os elementos que socialmente lhe parecem importantes. E é por isso que cada idioma é uma maneira diferente de pensar, uma forma também axiológica de enxergar o mundo. Na língua dos esquimós há 40 terminologias para definir o que em português chamamos apenas de neve. Porque a neve tem um sentido muito mais relevante para aquela sociedade do que para os falantes do português.

Acontece que conforme a nossa abstração através da linguagem foi se desenvolvendo, pudemos não apenas entender melhor a nossa realidade e dar nomes as coisas, mas passamos a conseguir realizar a transmissão deste conhecimento. Através da linguagem foi se tornando possível a homens e mulheres passarem de certa maneira, para além do presente. 

Pela linguagem deixamos de reagir somente ao tempo presente, adquirimos parte do passado e capacidade de pensar o futuro. Só é possível planejar uma vida devido a linguagem, a nossa capacidade de abstração. Só é possível obter o conhecimento historicamente construído devido a linguagem. Os outros animais sem essa característica de abstração tão complexa, vivem apenas o presente.

Recentemente assisti um filme, "A Chegada" (contém spoiller), que estava concorrendo ao Oscar como melhor filme e outras categorias, ganhou o prêmio de melhor produção de som. A história é sobre extraterrestres que chegam a Terra em 12 naves. E durante a narrativa os seres humanos conseguem estabelecer uma comunicação com eles, a personagem principal que inicia este processo é uma professora universitária de linguística convocada pela CIA. 

Ela aos poucos, vai iniciando um diálogo com os seres não humanos, passo a passo, usando quadros. Até que a comunicação se desenvolve e descobrem que os ETs vieram ao nosso planeta com o intuito de trazer um presente, uma linguagem universal para os seres humanos. Linguagem esta que seria capaz de nos trazer o domínio do tempo, de saber plenamente sobre o futuro.

Fiquei pensando se isso seria possível literalmente, achei a ideia fantástica, pensar que a cortina do tempo que separa passado, presente e futuro nos está imposta apenas porque não chegamos a uma complexidade de abstração suficiente para tal.

Mas como metáfora, nos diz sobre o que já acontece. Quanto mais eficaz for a nossa capacidade de abstração e consequentemente de comunicação, mais seremos capazes de transcender no tempo, de ir além dos nossos limites, de absorver e entender o passado para construir um futuro melhor. O bom uso da linguagem é nossa máquina do tempo. 


quarta-feira, 8 de março de 2017

8 de Março e a Defesa Pessoal para Mulheres

                   


Em todo 8 de março, Dia Internacional da Mulher, milhões de pessoas escrevem ou se manifestam sobre este tema. Muitas mulheres, que há tempos lutam por suas causas, ganham um pouco mais de visibilidade. E cá estou eu, na mesma direção.
A vivência do que significa ser mulher é o tema principal da minha história... primeiro, por eu ser mulher, e segundo, porque trabalho com isso, sou policial civil de uma Delegacia da Mulher e todos os dias atendo casos de mulheres que foram agredidas, humilhadas e desrespeitadas em sua humanidade pelo simples fato de serem mulheres. Não passa um dia em que eu não ouça uma mulher chorar e lamentar sua condição de gênero, mesmo que ela não saiba o que isso signifique teoricamente. E, além disso, acabo de escrever uma dissertação de mestrado que também se refere a este tema, à luz do sociólogo francês Pierre Bourdieu e de sua obra importantíssima intitulada “A Dominação Masculina”. No entanto, de todas as minhas experiências pessoais, profissionais ou políticas, a que eu gostaria de trazer neste dia, não é nenhuma destas que acima descrevi. Há mais ou menos um ano, eu e mais algumas pessoas iniciamos um projeto de realizar Oficinas de Defesa Pessoal para Mulheres. A ideia surgiu porque eu percebi que muitos crimes poderiam ser evitados caso as mulheres soubessem se defender minimamente. No entanto, conforme passamos a colocar em prática tais oficinas, com públicos bastante diversos (mulheres jovens e mais idosas, mulheres hetero e homossexuais, mulheres inseridas nos movimentos sociais e as que nunca haviam participado de qualquer roda de debate sobre o tema), eu percebi que na vida de todas elas, conforme perguntávamos no início da Oficina, constavam relatos de medo. A vulnerabilidade que as mulheres sentem ao estarem sozinhas em qualquer ambiente público é concreta, é real. Não somente pelo desprivilégio físico, mas porque fomos culturalmente ensinadas a não reagir e convencidas de que somos fracas. Então, passamos a fazer uma abordagem ensinando alguns mecanismos, com o intuito de instrumentalizar as mulheres a saírem dessa posição de vítima. E, durante as sessões, os olhos delas brilhavam por se verem capazes de reagir, perceber seu ambiente e defender suas vidas e suas integridades físicas. Independente de qualquer orientação política ou ideológica, torna-se nítido que ao aprenderem que são capazes, de fato, as mulheres passaram a ser capazes. E no fim de todas as oficinas de Defesa Pessoal, os relatos foram de mudança interna. Por meio de um mecanismo prático, pudemos gerar reflexões empoderadoras, e cada uma dessas mulheres pôde enxergar um mundo mais seguro para si, a partir de si mesma e dos mecanismos já existentes em seus corpos e em sua identidade. De todas as coisas que tenho feito desde a adolescência a respeito da luta das mulheres, praticar e ensinar técnicas de defesa pessoal é a que eu mais gosto, pois tem um efeito imediato. Mas não quero aqui diminuir nenhuma iniciativa, o mundo só é “menos pior” para as mulheres por causa de cada instante de luta que travamos. E continuaremos sem parar. A todas as mulheres, incluindo a mim, é claro, neste 8 de março e sempre, desejo uma vida plena!!

terça-feira, 7 de março de 2017

A Guerra da Arte de Steven Pressfield

                    
                      Acabo de terminar a leitura da obra A Guerra da Arte de Steven Pressfield. E não poderia deixar de escrever sobre ela, porque achei genial. Steven foi acusado de escrever um livro de autoajuda. Mas não é disso que se trata, autoajuda são receitas simplistas de como se deve viver, que reduzem dificuldades imensas, criando ilusões. 
                             A guerra da Arte se inicia criando um conceito de que na vida de todos os seres humanos existe algo que ele chama de Resistência. Este mecanismo é o que afasta os seres humanos de sua verdadeira vocação, da construção de uma verdadeira identidade e que caso nos rendamos a esta Resistência, nunca viveremos a plenitude de nossas vidas.
                        O autor afirma que a Resistência tem muitas faces, podendo ser expressa desde a desorganização até doenças psicossomatizadas. Pressfield conta a sua luta para vencer a Resistência que a vida o impôs, e como se tornou um "Profissional" diante do seu chamado como artista. Seu conjunto de decepções e frustrações é bastante curioso. 
                               Steven é roteirista de cinema e passou décadas tentando implacar um de seus roteiros em Hollyhood. E conta que depois de receber inúmeros nãos, conseguiu finalmente produzir um filme, mas foi um fracasso. Ele é autor de King kong 2, que foi massacrado pela crítica. Então quando pensava em desistir, em conversa com um amigo, este disse a ele, "sinta-se feliz, foi um fracasso, mas finalmente você está onde gostaria, você saiu do estacionamento, você saiu da arquibancada, está na arena. Foi sua primeira derrota real, não pare!"
                             E ele não parou, continuou trabalhando duro, canalizando sua vontade para vencer a Resistência, buscando disciplina, organização de vida, sem ilusões, sem buscar soluções rápidas e caminhos curtos. Até que conseguiu implacar novos roteiros que se tornaram grandes sucessos, expressão de seu trabalho e de sua identidade lapidada pelo tempo e pela persistência.
                               E por fim, ele descreve que da mesma forma que existe a Resistência que nos sabota para nos encontrarmos com nossa vocação na trajetória de nossas vidas, há forças que promovem o sucesso de nossas lutas se soubermos criar as devidas condições para que elas nos alcancem. Ele as denomina "musas", como referência a mitologia grega. Recomendo o livro. Tem um tom poético e filosófico belíssimo.

segunda-feira, 6 de março de 2017

Todo medo é medo de barata!

             
                    Eu sempre tive medo de barata. Medo não, pavor mesmo. Do tipo que não conseguia ficar no mesmo ambiente em que houvesse uma barata ainda que morta, daquelas que fazem escândalo quando a barata aparece. 
                A barata é um ser sujo, que vem das profundezas das sombras (risos), mas não oferece um risco imediato. Ela não tem veneno, é um ser pequeno e que não é dos insetos mais velozes, o que significa que pode ser morta facilmente, com um chinelo esmagador ou um mero veneno comprado no mercado.
          Acontece que mesmo sabendo disso, ainda assim, o pavor contra baratas permanecia intacto dentro de mim. Algo não racional.
              Há alguns dias estou morando sozinha, e tive o desprazer de ter que enfrentar algumas baratas, fui racionalizando meu medo, comprei veneno e o medo se foi, talvez não por completo, mas sinto que tenho evoluído.
             No entanto, há algum tempo tenho refletido sobre os meus medos, não somente o de barata, mas todos eles. Em algumas reflexões da cultura oriental, o medo significa uma Falsa Evidência de Aparência Real. Porque no geral, o medo não nos ajuda em nada. Quando digo isso, excetuo o medo que pode ser traduzido como cautela diante de algo desconhecido. Mas me refiro a este pavor que temos diante de coisas, que tornam nossos problemas muito maiores do que são.
                O medo se retroalimenta, e muitas vezes cria seu próprio objeto temido. Medo é uma forma de autosabotagem que me acompanhou a vida toda. E inúmeras vezes me privou da vida. O medo cria uma narrativa muito pessimista dentro de nós, faz descrições lineares da vida, projeta nossas decepções antigas em pessoas que não tem nada a ver com o que foi, afirma nosso fracasso antes de realizarmos qualquer coisa. O medo nos diz que a solidão é algo terrível que nos destruirá. O medo diz que não seremos amados e nem capazes de amar. O medo é um tagarela perverso interessado em posse e segurança para o ego. E quando conseguimos superá-lo, percebemos que ele não tem razão.
               Por isso, guardada a excessão do medo sinonimo de cautela, todo medo é medo de barata. Na minha cabeça enfrentar uma barata antes era praticamente enfrentar um dragão que soltava fogo, algo maior que eu. Acontece que na verdade, assim como a maioria dos nossos medos, eles podem ser enfrentados de maneira simples, com um chinelo de borracha ou um veneno de spray. Basta não lhe atribuir poderes místicos, quanto mais acreditarmos em nossos medos, maiores eles serão.

quarta-feira, 1 de março de 2017

Há em mim...

Há em mim uma resistência,
Funcionando freneticamente,
Mergulhada nos meus medos,
Para o bem e para o mal.

Há em mim uma identidade,
Recheada de vícios e virtudes,
Um mosaíco em movimento,
Aguardando o seu final.

Há em mim uma aventura,
Cuja essência inquieta,
Vira do avesso e arquiteta,
Um enorme vendaval.

Há em mim um amor,
Traduzido em várias faces,
Exercido em muitas fases,
Para além do trivial.

Há em mim um segredo,
Um segredo do segredo,
Que de tão secreto,
Se tornou sacramental.