segunda-feira, 13 de novembro de 2017

Aborto em caso de estupro: um direito do homem de 1940!


O Código Penal Brasileiro vigente hoje foi outorgado no ano de 1940. E imagine só como era o Brasil neste tempo, como as famílias se organizavam e qual era o papel da mulher neste contexto... não precisamos ser historiadores para saber que a desigualdade entre homens e mulheres era muito maior do que hoje, o papel da mulher no mercado de trabalho era infinitamente menor do que na atualidade e que valores como a virgindade das mulheres, o casamento heteronormativo, a maternidade, a família tradicional eram bens jurídicos e morais de alto valor para a sociedade.

No entanto, desde então, a possibilidade do aborto em casos de estupro ou de risco de morte para a mãe estavam previsto na legislação criminal. Então a pergunta é: se em 1940 tínhamos um Brasil muito mais conservador, majoritariamente católico, num contexto no qual os direitos das mulheres estavam muito menos na pauta do que hoje, porque então, o aborto em caso de estupro foi permitido no Código Penal?

A resposta para isso não tem a ver com a garantia dos direitos das mulheres e sim com a garantia dos direitos dos homens!! Sim, pois caso uma mulher casada fosse estuprada e ficasse grávida, o homem casado com esta mulher, não seria obrigado a criar um filho que não fosse dele. Ou ainda, se uma moça "virgem", de "boa família" fosse violentada, o pai da família da qual ela fosse oriunda não seria forçado a suportar tal vergonha. Os direitos dos homens sobre sua própria linhagem estaria acima do "valor" da vida do feto gerado. O bem jurídico maior protegido neste caso era tão-somente a honra masculina.

É claro que neste tempo, muito provavelmente, não havia nenhuma discussão quanto ao estupro marital. Possivelmente, o estupro marital jamais seria sequer considerado estupro, pois também se localizava no campo do direito do homem de ter relações sexuais com sua mulher quando assim desejasse. Realidade que em muitos lares brasileiros ainda é plenamente vigente.

Mas a sociedade mudou nos últimos 77 anos. O adultério deixou de ser crime, o divórcio passou a ser permitido por lei, a união civil homoafetiva foi reconhecida legalmente, as mulheres entraram para valer do mercado de trabalho, apesar de ainda sofrerem com a desigualdade, a virgindade feminina deixou de ser um critério absoluto para o casamento mesmo dentro da "família tradicional brasileira" salvo raras exceções, a maternidade independente ganhou pauta, a tecnologia avançou tornando possível a verificação da paternidade sem erros através de um teste de DNA. E então, o fato de o aborto ser permitido por lei em casos de estupro, passou a ser um direito incorporado a vida das mulheres. Sorte a nossa até aí.

Contudo, de uns tempos para cá, as coisas tem andado estranhas no Brasil. Uma onda conservadora e fascista fez com que uma multidão de cínicos que se encontravam escondidos no "armário" perdessem a vergonha ao expressar seu ódio. Apareceram pastores neopentecostais que cresceram a partir de discursos individualistas e preconceituosos, gente pedindo a volta da ditadura militar, político fazendo homenagem a torturador, deputado dizendo que mulheres tem que ganhar menos mesmo, golpe em presidenta eleita democraticamente, desmonte de políticas sociais e por isso a volta do Brasil para o mapa da fome no mundo, adesivo da presidenta do país de pernas abertas na boca do tanque de combustível. Isso é, não está faltando gente cínica querendo que as mulheres voltem para as suas cozinhas, os negros e negras voltem para as suas senzalas e que os LGBT voltem para os seus armários.

Pois bem, diante de tudo isso, de tantos retrocessos que aliás vão muito além dos que aqui citei, estava demorando mesmo para um grupo de 18 homens, perfeitos representantes do cinismo, que não fazem ideia das violências que nós mulheres vivenciamos em nosso cotidiano e nem se importam com isso, desejarem revogar um direito que adquirimos "nas costas" deles, quase "sem querer". Afinal de contas, hoje em dia, nenhum homem é obrigado a assumir ou dar seu nome a filho que não é seu, e o casamento já não é mais está instituição tão "imaculada", que não pode ser desfeita sob nenhuma hipótese. E além do mais, para a classe média e as classes mais abastadas, o aborto em qualquer hipótese é absolutamente legal e pode ser feito em qualquer clínica ginecológica bem decorada no Jardins a um preço bem menor do que muitas cirurgias plásticas estéticas.

Não há dúvida que a PEC 181 que pretende revogar a possibilidade da interrupção da gravidez em caso de estupro é um grande retrocesso. Além de ser uma decisão machista, misógina e descriminatória em termos de penalizar mulheres, fundamentalmente, pobres e negras. Sendo assim, mais uma vez, para fazer coro com as demais tragédias e as farsas impostas por uma direita burra da política brasileira na atualidade, a perda de direitos novamente tem sexo, cor e mora na periferia.