Querida Alice,
essa não é a primeira carta que eu te escrevo. Aliás, talvez sejam mesmo para você todos os meus escritos, mesmo quando para outros. É à você que pretendo deixar os registros da história. No entanto, minhas cartas para você propriamente ditas nunca foram publicadas. O que talvez seja uma pena... e também um alívio.
Hoje acordei estranha, Alice. Sinto que estou com alimentos oníricos e questões da alma um tanto mal digeridos. Tem sido tantas formulações e em conclusão nenhuma. E acho que a indigestão me criou uns bloqueios. Ando meio sem sentir. Umas tantas camadas inibem minhas pulsões. Nem recebo as alegrias com fervor e nem as tristezas com o devido drama. Estes dias quase consegui... nas tristezas talvez seja mais fácil... não carregamos culpa em ser tristes, Alice. Mas em sermos felizes, ah... não posso dizer o mesmo.
Há poucos dias estive em lugares que não havia estado antes, conheci pessoas que não conhecia. E como são complexas as almas e como os corpos são tentadores. Não há pensamento linear que defina aqueles que aceitaram o desafio de viver sua própria identidade. E a minha identidade é cheia de paradoxos, contradições e angústias... e a dos outros também.
Sabe, Alice, no fim é tudo sobre o amor. O problema é que as "sociedades" inventaram receitas pré-fabricadas para amar. E isso é errado. O amor apenas é. De um jeito ou de outro. Tem amor que não cabe na nossa cabeça, tem amor que não cabe no nosso coração, tem amor que não cabe no nosso corpo. Mas é amor também. Tem amor que cabe em todos os nossos lugares. Tem amor que cabe por muito ou por pouco tempo. Tem amor incabível, tem amor intransponível. Não importa.
Ontem assisti um filme que o protagonista dizia que aqueles que se amaram um dia tem de no mínimo serem amigos para sempre. E acho mesmo, Alice, que basta um dia para amar infinito. E que bom seria se todos os que amamos e se distanciaram de nós por algum motivo, fossem nossos amigos para sempre. É lindo... mas acho que tenho mais amigos que nunca foram amores do que ex-amores amigos. Talvez eu não seja tão boa nisso.
Mas ainda sobre o amor, a verdade Alice, é que a gente é muito ruim de amar. A gente confunde amor com idolatria... tanto pra um lado como para o outro. Explico. Ídolo no conceito bíblico é um objeto com o qual tentamos substituir Deus. Ora tratamos o ser amado como deus, ora como objeto. Colocamos nele a expectativa que só poderia ser cumprida pelo Criador... desejando que ele atenda nossa vontade na exatidão de nossa exigência... mais ou menos o que esperamos de um forno microondas. Idolatria é um tipo de uso... amar é se relacionar, se comprometer, montar um quebra cabeças todos os dias. E aí, o lance é que volta e meia o outro também encarna o ídolo, se coloca como tal.
Amor é outra coisa. Amar é se ver como igual. É uma frequência em outro patamar. As vezes eu sinto, vivo, experimento o amor. Sempre que dá certo...eu estou pronta a viver o amor, ou as vezes, quase pronta, mas a gente ama assim mesmo. Por que não tem nada pronto na vida e também não tem descanso... o que mais se parece com descanso, Alice, é mesmo o amor!
E parece clichê, mas o amor é a melhor coisa do mundo, garota. E não tem receita não. Sempre quando eu paro, tiro o piloto automático do comando e assumo o volante, eu começo a sentir um pouco mais, saio da anestesia estranha e sinto tudo. Começa por sentir a gente mesma, desconstruir aqueles desamores que carregamos ao olhar no espelho, ao expressar a nossa opinião, aquele medo que dá, Alice, pois é... é ali que mora o desamor.
O medo de ser quem somos, da não aceitação do outro e da sociedade, do julgamento... esse medo vai criando raiz, se expandindo dentro da gente para diversas partes, quando a gente vê... a gente é puro medo e quase nada de amor. E nossas lacunas passam a falar mais alto do que as colunas do amor e de nossos sonhos. O que sobra é uma alma implorando uma migalha daquilo que é abundante no Universo... a gente acha que é pobre de amor, mas é rica, muito rica, Alice.
Por dentro de mim... é um pouco isso, minha querida. Por fora, tudo vai estranho também... os movimentos jogam as frequências cada vez mais para baixo. O medo que era mais dentro invade lá fora. E as vezes, quando a gente sente, a gente chora... mas não é sempre.
Só não se esqueça, Alice, tudo é sobre o amor.
Eu.