sábado, 15 de dezembro de 2018

Amantes


As comunicações tácitas incomodavam, rasgavam o peito. Ao mesmo tempo que lhe acariciava. Sabia que estava sendo observada. Talvez lida. Uma parte sua guardava a tentação de estar fora daquele olhar que tantas vezes pudera ver presencialmente, atentamente... bloquear passava por sua mente... os olhos dele agora eram manifestações quase estranhas... tanto que nem lhe pareciam reais. Não tinha notícias do lado de lá. As últimas que obtivera não a fizeram feliz, ao contrário, criaram um abismo maior dando embasamento para afastar-se ainda mais severamente. Dias de raiva, dor, rancor. Uma traição silenciosa cuja causa não sabia ao certo qual era. Acusá-lo do quê? Tentava! Queria minimizar seu senso de empatia a todo custo. Desumanizar a presença dele ainda tão intensa. Tentava! Mas tentar é o mesmo que não conseguir. Não podia. Seus pensamentos ainda estavam bagunçados, seus sonhos perturbadores num sono sempre mal dormido. Luto por alguém tão vivo? Apagá-lo de sua história depois de tanto impacto causado? Preservar a gratidão. Gostaria... ou não. Ser grata, reconhecê-lo humano seria sinônimo de um amor ainda expresso, impresso, intenso gravado na sua própria pele. Lembrava dos motivos de sua partida, legítimos, dignos, cristalinos. Mas não era só isso... sua memória também era composta de manifestações transbordantes, de prazer, de trocas inéditas. Angústia. Os olhos enchiam-se de lágrimas, mas ainda não conseguia chorar, as lágrimas não escorriam. Dores. O corpo chorava por dentro o choro que não caia pra fora. História. Sabores. Sacadas. Diálogos. Descobertas. Pertencimento. Falta. Alma. Calma, calma, calma... dizia a si mesma "tudo vai passar, estamos na pior parte". Olhar para trás. Mas não havia caminho de volta sem negar-se... não havia estrada pra frente sem deixar para trás um pedaço de sua carne, de seu espírito. Viradas de chaves incompletas, repletas de sensações febris. Calor. Frio. Os sentidos do corpo que buscavam sentidos outrora experienciados. Desamor... amor... amados... amantes... tão perto, distantes.

sexta-feira, 14 de dezembro de 2018

Três


Existem sonhos que são pura poesia, mas existem pesadelos. Ela ainda não tinha certeza sobre em qual estado onírico estivera. Mas guardava a sensação de que seu entendimento simbólico não seria o bastante para interpretá-lo. Buscava ajuda. Dialogava mundo afora, sem as barreiras do tempo. No entanto, guardava uma impressão antipoética na garganta. Um sentimento nítido de ter se deixado invadir. Não sabia se a invasão havia sido feita pela natural intensidade da poesia ou pela antipoesia da vida real em sua face mais dura. Ou as duas. Em qualquer hipótese, uma certeza, tudo era por sua própria culpa ou mérito, a depender do referencial! O sonho havia tido um ardente apelo estético e emocional, talvez por isso lhe restara tantas dúvidas. Metáforas. A vida era metáfora da vida, os sonhos também, tudo se repetia. Qual era a matriz da sua história? A primeira experiência que a mantivera no mesmo círculo por tanto tempo? Três mulheres, ela já as tinha visto, vestido suas especificidades, vivendo de maneiras peculiares a mesma trajetória. Uma em três...como se fossem vidas diferentes, sem serem. Talvez uma versão herege e feminina da divindade ocidental de agora. Todas estéticas, arquetípicas, radicais. Mas sempre repetitivas. Compunham sua identidade mosaica Atena, Afrodite e Psique. Deusas de luto habitavam sua alma. Atena guerreira, oriunda da cabeça de Zeus, civilizada, sagaz, altiva, intelectual. Afrodite... a deusa do amor, a sensualidade a flor da pele, dona do sexo, da sedução e apreciadora das levianidades do Olimpo. Psique... a mortal que, ao encontrar o deus do amor (penso que talvez o amor-próprio)... tornara-se a deusa da alma. Havia um quê de fatalidade nas imagens apresentadas pelo inconsciente. Qual delas seria sua personalidade primária? A verdade é que elas não se davam entre si, mas haviam nascido tão juntas! Reconhecê-las em seus sonhos, mesmo machucadas e tristes, contraditórias, representava o estabelecimento e o desabrochar da totalidade originária potencial. Uma conclusão, portanto, poética e antipoética, afinal... composta por três deusas, nascia uma só mulher: plena, inteira, imortal!

Ilustração de Joaquim cartaxo
Texto inspirado em diálogos com a obra de Jung "A Psicologia do Inconsciente"

quinta-feira, 13 de dezembro de 2018

Maus poetas


Os dias eram completamente diferentes uns dos outros. Fazendo com que questionássemos a verdade da existência da primavera. Mas não por isso, exatamente. Quando se sai das rotinas padronizadas, previamente estabelecidas como padrões de vida, fica-se a navegar a deriva, com o desafio de encontrar novas formas de viver.

Sim, questionamos tudo, as instituições sacralizadas, as obrigações cristalizadas, nossos próprios quereres primários. Nunca sabíamos ao certo o que era nosso, o que nos era imposto. O que era do outro. Por suposto. As brincadeiras com palavras permitiam algum fôlego. Um fazer artístico rudimentar e sem compromisso. Sem compromisso mesmo... não nos importávamos com quem leria as nossas cartas, fazíamos para nós mesmos ou para o vento. Ou um para outro. Ou para ninguém.

Sublimação definia um pouco das nossas intenções. Nas palavras e no modo de viver também. A escrita permitia que lêssemos a nós mesmos. Desde sempre foi assim, conosco, maus poetas descomprometidos, como também com os bons. Os imitávamos como quem comparecia numa festa a fantasia vestidos com os devidos arquétipos. Uma forma peculiar de diversão. Mas voltemos, no começo falávamos sobre a primavera... só não façamos confusão, agora era sobretudo, sublimação.

Mas sublimar o que? Sabíamos ao certo? As paixões reprimidas ou vividas homeopaticamente? As palavras engolidas diante das travas do outro, com o eu exposto e imposto? As amizades entrelaçadas, mas impedidas pelo tempo e espaço? As mágoas contidas nos devorando aos pedaços? O enxergar nossos próprios limites e o quanto somos por tudo culpados? As noites jamais terminaram ou terminariam como gostaríamos...

Sim e não! Escrever como diversão e sublimação era só uma desculpa. Uma história que contávamos para parecer simples. Nossos ensaios escritos éramos nós descritos. E as palavras eram mágicas, davam formas a um abstrato perigoso e resoluto. Iam despindo as almas, revelando intentos, tornando grande o que parecia pequeno. A poesia, de aparência inofensiva, uma arma que as vezes era cura... outras, veneno!

Ilustração de Joaquim Cartaxo - feita para esta narrativa poética.

terça-feira, 11 de dezembro de 2018

Eu!

Totalidade circunscrita, 
Interesses sistemáticos, 
Conhecidas e infindáveis perguntas! 
Eu! 
Onde estavam em mim as lacunas que proporcionaram conexões tão viscerais? 
Analisar o outro era sempre uma tentação sem pudores. 
Analisar a si mesmo um caminho amedrontador. 
Objeto, sujeito, arquétipo! 
Freud, Adler, Jung! 
Libido, poder, introversões e extroversões. 
Amor, ego, construções histórico-sociais. 
Os efeitos provenientes de si próprio, 
As histórias repetidas ciclicamente durante toda a vida, 
Guardando sempre inéditos requintes de deslumbramentos. 
Efeitos incontroláveis de fundo psíquico. 
Indagações aparentemente casuais. 
Contínua atuação recíproca sobre o outro em molduras acanhadas, 
Generalizações sempre precipitadas a um aspecto único. 
Tudo e nada. 
Ocasião de assumirem identidades individuais. 
Teorias sempre e indevidamente atualizadas. 
Agrupamento gradual de fragmentos. 
O tempo, o tempo, o tempo. 
De cujo evoluir não é possível escapar, 
De cujas palavras se pode engasgar. 
Participações místicas, 
Monstros de cabeças infinitas capazes de reduzir o pensar. 
Em não se tratar de objeções justas ou injustas, 
As portas da fantasia, 
Com capacidade relativa de sublimação, 
Evocava-se então a função reguladora dos contrários. 
Pois a saber que a plenitude da vida tinha normas e não as tinha, 
Sendo racional e irracional. 
Pensava, puxava os fios condutores, 
Escrevia e temia perder o controle. 

Ilustração de Tanya Shatseva (disponível no Instagram)